Betina Azevedo

Se você escolheu Nova York como destino dos seus estudos no exterior, é possível que seus primeiros dias tenham um que de déjà vu. Foi assim comigo. Estátua da Liberdade, Brooklyn Bridge, Times Square. Foi um desafio encontrar um ângulo novo em uma cidade que já habitava meu imaginário muito antes de eu pisar seu solo. Foram os filmes, sabe? O desfile da Macy’s em Ghostbusters, a loja de brinquedos em Quero Ser Grande, o Empire State em King Kong. Nova York é fotogênica mesmo.

The Statue of LibertyNo entanto, se engana quem acha que é fácil conhecê-la. Eu até tentei, mas os quatro anos que passei estudando lá só serviram para me fazer entender o quanto é difícil. Nova York é uma cidade dinâmica onde os lugares da moda mudam com uma rapidez difícil de acompanhar. O que é cool hoje pode estar ultrapassado em pouquíssimo tempo– in no time, como dizem. A ideia é amar suas lojas, boates, bares e restaurantes como se não houvesse amanhã. Por que não? Nova York é a terra do carpe diem, um lugar onde se vive intensamente qualquer paixão, seja ela por pessoa, sapato, obra de arte ou prato exótico.

Apesar de suas singularidades, Nova York tem um appeal universal – não é à toa que é tão cosmopolita. A expressão melting pot é muito usada para descrevê-la, e tem a ver com a origem das pessoas que a habitam, pois significa “caldeirão de nacionalidades”. Nova York é – e sempre foi – internacional. Aquele pedaço de terra tem atraído imigrantes desde os tempos dos colonizadores europeus. Cabe lembrar que a cidade foi escolhida como sede das Nações Unidas.

Times SquareVocê deve imaginar como as universidades da célebre cidade de Nova York são concorridas. Para conquistar um diploma universitário em Nova York é preciso ter dedicação e perseverança. A organização foi uma coisa que me ajudou desde a época em que ainda estava me candidatando a uma vaga na City University of New York. Aliás, a organização é uma qualidade indispensável no que se refere aos estudos. Eu tinha uma pasta onde colocava documentos importantes como certidões, traduções, formulários, resultados de testes (TOEFL e SAT) e cartas de recomendação de professores. Cada documento importante era guardado em um dos envelopes transparentes da pasta, uma espécie de recurso visual que indicava o meu progresso, já que cada adição à pasta era um passo dado rumo à aceitação em uma universidade estrangeira.

Depois de enviar todos os documentos necessários, fiquei esperando ansiosamente por uma resposta. Quando a tão esperada carta da CUNY chegou, fiquei um pouco decepcionada. A vaga oferecida era condicional, ou seja, a faculdade estava se comprometendo a me aceitar como aluna mediante apresentação de um determinado documento. No meu caso, o documento que eles queriam era o histórico escolar provando que eu tinha terminado o Ensino Médio. Como eu fiz escola técnica e concluí o curso de Ensino Médio em dois anos, eles não aceitaram meu diploma. Muita gente que recebe uma oferta condicional acaba desistindo, mas quando recebi a notícia não me dei por vencida e procurei me informar ao máximo sobre o assunto. Descobri que nos Estados Unidos há um teste chamado GED, ou General Educational Development, que é um certificado equivalente ao diploma de Ensino Médio. Resolvi ir para Nova York imediatamente e fazer o teste lá. Assim que cheguei me matriculei em um curso de GED e ao fim de três meses fiz o teste. Para mim o maior desafio foi o teste ser em inglês, mas eu passei com ótimas notas em todas as matérias: Estudos Sociais, Ciências, Matemática, Interpretação de Textos e Redação. É claro que o certificado foi logo para a tal pasta.

CUNYO resultado do GED chegou em meados de fevereiro e as aulas começavam em março. Quando liguei para o escritório da CUNY eles me disseram que não seria possível começar naquele semestre. A coisa é que eu não desisto fácil. Peguei meus documentos todos e fui para o escritório conversar com o pessoal da secretaria. Havia muita gente na sala de espera, mas tive paciência. Quando uma das administradoras me recebeu, expliquei para ela que havia recebido uma proposta condicional e que tinha comigo o documento que estava faltando. Como a pessoa com quem conversei por telefone, ela disse que seria impossível, já que as aulas começariam em duas semanas, e me ofereceu começar no semestre seguinte sem precisar me candidatar novamente. Uma oferta e tanto, mas eu tinha pressa. Mostrei o certificado e lembrei a ela que eu não estava pedindo que avaliasse todos os meus documentos em duas semanas, mas que simplesmente juntasse o único que faltava aos que já tinham sido aprovados. Ela me pediu para esperar e foi para a sala ao lado conversar com outra administradora. Eu ouvi toda a conversa. A outra moça se recusou no começo, mas ela repetiu o que eu tinha dito sobre não precisar começar do zero, simplesmente adicionar um documento, e completou o discurso com a seguinte frase: “Ela é muito organizada, tem todos os documentos em ordem em uma pasta.” Disse que tinha certeza que eu seria uma boa aluna. Quando voltou, me informou que eu podia começar naquele semestre.

Meu primeiro ano foi bem difícil, mas eu estava com aquela animação de principiante. Como ainda não sabia ao certo o que queria estudar, decidi cursar Liberal Arts. Vou tomar a liberdade de traduzir esse curso como “Ciências Humanas”, se alguém tiver uma tradução melhor, me corrija. Como nas universidades brasileiras, muitas matérias são obrigatórias. Além disso, às vezes é preciso terminar uma matéria obrigatória para cursar uma eletiva. A lógica deste sistema é óbvia, mas para um aluno estrangeiro é ainda mais importante começar com aulas de redação básicas, já que algumas diferenças entre a escrita do país de origem e a do país onde está estudando vão além da língua em si. Nos países de língua inglesa, por exemplo, o uso de aspas é diferente do que conhecemos no Brasil. Muitas vezes o que se aprende é contra-intuitivo e é normal errar algumas vezes até assimilar o novo sistema. Até hoje me dá arrepios escrever Brasil com z.

Aos poucos a profecia da administradora do escritório central da CUNY foi se tornando realidade. Eu tenho um interesse genuíno pelas matérias de Humanas . Foi fácil passar horas pesquisando os assuntos dos meus trabalhos de antropologia, filosofia, história e sociologia. Alguns professores achavam minhas ideias interessantes e recomendavam cursos honoríficos. No segundo ano, estudei relações internacionais. Gostei tanto que acabei decidindo cursar Relações Internacionais em vez de Ciências Humanas. Minhas boas notas foram se transformando em menções honrosas na dean’s list – a lista dos alunos com notas mais altas. Lá pelas tantas eu fui convidada para fazer parte da Phi Tetha Kappa, uma fraternidade como aquela do filme A Vingança dos Nerds (e eu me senti a própria). Meu empenho nos estudos foi amplamente recompensado.

Ainda no segundo ano, eu fiquei sabendo de um intercâmbio que minha faculdade fazia com diversas outras em outros países. Tive vontade de passar um semestre em Cuba, que era um dos possíveis destinos. Preenchi o formulário e entreguei para a secretária do decano. Dois dias depois, recebi um telefone do próprio decano me perguntando se eu gostaria de ir para a Nova Zelândia, pois a faculdade com quem tínhamos convênio estava me oferecendo uma bolsa integral com hospedagem e alimentação pagas. Não sei se você já ouviu a expressão “terra das oportunidades” ser usada para descrever a cidade de Nova York. Para mim foi mesmo.

Quando voltei da Nova Zelândia, já estava na época de me formar, pois comecei meus estudos em uma faculdade que forma associates (algo parecido com tecnólogos). Para receber o diploma de “associado” é preciso completar dois anos de estudos, mas eu queria o diploma de bacharel. Desde o começo, eu quis estudar em uma faculdade particular que ficava perto do lugar onde eu morava em Manhattan, mas ela era muito cara. Quando estava prestes a me formar na faculdade pública, eu recebi uma proposta da faculdade onde sempre quis estudar. Por causa de minhas notas eu fui convidada a terminar meus estudos pagando a mesma quantia que eu pagava na faculdade pública (minha bolsa seria de 75%). Eu simplesmente não acreditei no que estava ouvindo.

É lógico que tive que participar de um processo de seleção. Nos Estados Unidos é comum as pessoas começarem os estudos universitários em uma faculdade e terminarem em outra. Eles chamam esse tipo de aluno de transfer student,ou “aluno que fez transferência”.Meus últimos dois anos de estudo foram bem puxados, mas eu consegui manter o padrão que alcancei no começo. Os professores americanos esperam que os alunos participem em classe. As aulas são sempre uma espécie de debate. É diferente em outros países. A maioria dos professores de países do leste europeu, por exemplo, esperam que o aluno seja passivo durante a aula e estude bastante em casa. Nos Estados Unidos, não. Muitos professores diziam a mesma coisa no primeiro dia de aula: “Se o curso estiver acabando e eu não souber quem você é quando fizer a chamada, você não vai conseguir nota máxima comigo”. Eu tive sorte, pois gosto de debater ideias.

Às vezes ainda me pergunto se tudo que aconteceu naqueles quatro anos em que vivi em Nova York foi uma espécie de sonho. Como é possível que uma cidade tão vertical expanda os seus horizontes? Nova York é mesmo cheia de oportunidades de crescimento intelectual e pessoal, um lugar onde é fácil sonhar grande – dream big, como os nova-iorquinos costumam dizer